Legislativo Deputados e senadores aumentam domínio sobre os recursos da União; aliança para evitar impeachment deixa governo Bolsonaro refém do Centrão.
Desde 2019, valor controlado por emendas chegou a R$ 115 bilhões e 215 projetos de parlamentares viraram lei.
Protagonista da maior renovação política desde 1988, o Congresso que encerra a atual legislatura no início de 2023 tem controle inédito do Orçamento e o maior volume de projetos aprovados por iniciativa dos próprios parlamentares. De 2019 até hoje, o Legislativo comandou o destino de R$ 115 bilhões em emendas parlamentares, mais do que o triplo dos R$ 33 bilhões liberados nos quatro anos anteriores, e tomou para si a administração do “toma lá, dá cá”, antes conduzida pelo Palácio do Planalto.
O aumento do poder do Congresso ocorreu após a aliança feita pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) com o Centrão – grupo de partidos fisiológicos que dá as cartas na Câmara – para se livrar de um processo de impeachment. Foi também para contornar crises que nasceram o orçamento secreto e a chamada “emenda Pix”, revelados pelo Estadão. Os dois mecanismos foram criados para repassar dinheiro a redutos eleitorais dos parlamentares, sem controle público dos gastos.
Pela primeira vez nos últimos dez anos, o número de projetos que se tornaram lei, com assinatura de deputados e senadores, superou os de iniciativa do Executivo. Mas o governo virou refém do Centrão. Desde o primeiro ano de mandato de Bolsonaro, em 2019, até hoje, o Congresso deu sinal verde para 215 projetos de iniciativa dos próprios parlamentares e 140 do Executivo, segundo estudo feito pela consultoria Action Relgov para a Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE). Na legislatura anterior, a balança era inversa: 154 propostas nasceram no governo e 111 foram apresentadas por deputados e senadores.
A aprovação recorde de projetos dos congressistas foi puxada por dezenas de medidas de caráter simbólico. Dos 215 projetos que passaram pelo crivo da Câmara e do Senado, pelo menos 30 eram de homenagens, datas comemorativas e “batizados” de recintos. Foi assim que 23 de junho virou Dia do Policial Legislativo, a cidade de Lagoa Vermelha (RS) recebeu o título de Capital Nacional do Churrasco e o ex-deputado Carlos Eduardo Cadoca teve o nome inscrito na sala que abriga a Comissão de Turismo da Câmara.
MUSCULATURA. A parceria de Bolsonaro com o Centrão ganhou musculatura sob as gestões dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (Progressistasal), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), iniciadas no ano passado. Até o momento, deputados e senadores acompanharam as orientações do governo Bolsonaro em 76% das votações, em média, de acordo com dados compilados pela ferramenta Basômetro, do Estadão.
Além de aprovar a reforma da Previdência, o Congresso entregou leis que mudaram regras de setores da economia, como a privatização da Eletrobras, o novo marco do saneamento básico e a autonomia do Banco Central. Ao mesmo tempo, engavetou propostas que estão paradas há décadas, entre elas as reformas tributária, administrativa e política, abandonadas pelo próprio governo.
Projetos de iniciativa do Planalto também foram alterados para atender a interesses dos parlamentares. Um dos casos foi justamente a privatização da Eletrobras, concluída há dez dias. A proposta, que nasceu de uma medida provisória de Bolsonaro, passou pela Câmara em junho do ano passado e saiu cheia de “jabutis”, jargão político para se referir a medidas incluídas na última hora, sem relação com o texto original. Na lista dos jabutis entrou a instalação de termoelétricas em redutos eleitorais dos congressistas, o que pode aumentar a conta de luz dos consumidores.
QUEDA DE BRAÇO. Na pandemia de covid-19, o Congresso também aprovou o auxílio emergencial de R$ 600, após uma queda de braço com o governo para aumentar o valor – que depois acabou reduzido para R$ 400 por mês – e o socorro a Estados e municípios. O Senado comandou, ainda, a investigação sobre omissões do governo na crise, por meio da CPI da Covid.
Mas o mesmo Congresso que agiu na pandemia também elevou para R$ 4,9 bilhões o Fundo Eleitoral destinado a financiar campanhas e ampliou as verbas do orçamento secreto. Na prática, a gestão Lira-pacheco é a que mais tem controlado o Orçamento nos últimos anos. O valor de emendas liberadas para pagamento foi de R$ 10,7 bilhões no período Eduardo Cunha-renan Calheiros (20152016), aumentou para R$ 22,1 bilhões com Rodrigo Maia-eunício Oliveira (2017-2019) e cresceu ainda mais sob Maia-davi Alcolumbre (2019-2021), chegando a R$ 45,9 bilhões. O montante deve atingir o recorde de R$ 69,1 bilhões na gestão Lirapacheco (2021-2023).
A velocidade na tramitação dos interesses da cúpula do Congresso virou marca desta 56.ª legislatura (2019 a 2023). Em maio do ano passado, Lira patrocinou uma alteração no regimento da Casa que diminuiu os instrumentos da oposição para barrar votações. Em 2015 e 2016, quando Cunha presidia a Câmara, o tempo de tramitação de uma proposta era de 269 dias, em média, considerando apenas os projetos que se tornaram lei. Sob Lira, esse prazo caiu para 140 dias.
“O Congresso tem encontrado mecanismos de coordenação para a produção legislativa em um cenário de fraqueza do Executivo. Mas é um reformismo que não traz crescimento econômico”, argumentou o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria. “É uma colcha de retalhos, sem o compromisso dos parlamentares com prestação de contas no plano eleitoral.”
Na avaliação da cientista política Beatriz Rey, o Congresso vem se fortalecendo desde o começo dos anos 2000. “Só que, antes, esse fortalecimento acontecia de forma mais institucionalizada. Sob Lira, o processo se tornou menos institucional e menos transparente”, disse Beatriz, doutora pela Syracuse University, nos EUA.
‘INDEPENDÊNCIA’. Lira, por sua vez, afirmou que a Câmara teve “sucessivos e expressivos quóruns qualificados, com ampla participação da quase totalidade da Casa”. Para ele, esse cenário permite que o Congresso atue “com independência”, evitando a repetição de “graves equívocos do passado”, com “uma nova dinâmica de equilíbrio, freios e contrapesos”.
O presidente da Câmara defende a adoção de um “sistema semipresidencialista”, a partir de 2030. O modelo prevê a figura do primeiro-ministro e aumenta ainda mais o poder do Congresso. Na tentativa de evitar “versões” sobre mudanças das regras do jogo no meio do caminho, Lira diz que a proposta deve ser votada por parlamentares eleitos em outubro.
“Durante quase três décadas, esse comando constitucional (semipresidencialismo) foi sendo adiado e substituído por um presidencialismo de coalizão, que produziu crises políticas conhecidas, escândalos e afastamentos de chefes de governo”, afirmou Lira. Questionado sobre críticas por pregar mudança do sistema de governo, ele respondeu: “Meu compromisso, sempre, será trabalhar em conjunto com todos pelo aperfeiçoamento de nossa democracia”. •
“O Congresso tem encontrado mecanismos de coordenação para a produção legislativa em um cenário de fraqueza do Executivo. Mas é um reformismo que não traz crescimento econômico.” Rafael Cortez cientista político
Eleitos na onda bolsonarista que dominou o País em 2018, os campeões de voto de quatro anos atrás apostaram no discurso ideológico e, em geral, não conseguiram liderar os principais debates do Congresso. Alguns romperam com o presidente Jair Bolsonaro (PL) e mudaram de partido. Outros ainda tentam chamar a atenção com propostas polêmicas.
Candidato com a maior votação para deputado federal, Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho “03” do presidente, não entra nas discussões mais relevantes da Câmara. Investe, porém, nas redes sociais e tem atuação voltada para o “bolsonarismo raiz” em canal do Youtube. Eduardo defendeu, por exemplo, “um novo AI-5” para conter manifestações de esquerda e citou “espionagem da China” ao falar sobre a adesão do Brasil à tecnologia 5G. Teve apenas um projeto que virou lei nesta legislatura: o que institui o Dia Nacional da Pessoa com Atrofia Muscular Espinhal.
Joice Hasselmann (PSDBSP), outra aliada de Bolsonaro naquela eleição, foi a segunda mais votada do ranking. Era do PSL, partido que elegeu o presidente, mas saiu das articulações políticas do Planalto ao romper com ele e perder a liderança do governo no Congresso. “Sou autora de 289 projetos de lei e coautora de muitos outros, inclusive o que regulamentou a telemedicina e o homeschooling no Brasil”, disse Joice. “Não fico esperando ninguém me dar nada. Arranco minhas relatorias na unha e sigo trabalhando pelo País.”
No Rio, o campeão de votos foi o deputado Hélio Lopes (PL-RJ), amigo de Bolsonaro. Lopes teve, até agora, dois projetos aprovados: um deles institui o Ranking Nacional Esportivo das Instituições de Ensino Superior Brasileiras; o outro aumenta as penas para casos de abandono e maus-tratos a idosos. As duas propostas, porém, não andaram no Senado.
Na Bahia, o mais votado não é apoiador de Bolsonaro, mas, sim, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Trata-se de Pastor Sargento Isidório (Avante-ba). O deputado se apresenta como “ex-gay” e anda pelo plenário com uma Bíblia embaixo do braço. Tentou emplacar lei proibindo o uso da palavra “Bíblia” em publicações não religiosas, mas, diante da polêmica, recuou.
FAMOSOS. Na disputa de 2018, o Congresso também foi ocupado por famosos, como os deputados Kim Kataguiri (União Brasil-sp) e Alexandre Frota (PSDB-SP). Os dois eram aliados de Bolsonaro, mas acabaram se afastando dele.
“Se fosse para dar uma nota ao conjunto da obra (do Congresso), diria que se salva muito pouco. A principal medida foi a reforma da Previdência, mas o conjunto é muito ruim, principalmente pela criação do orçamento secreto e pelo engessamento de bilhões para a compra de votos de parlamentares”, afirmou Kataguiri, um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL).
Frota já chegou a definir a Câmara como “lixo”, mas tem evitado avaliar o trabalho dos colegas. “Dou nota para o meu trabalho, que é 10 perto da vagabundagem, da preguiça e do descaso daquelas pessoas que olham apenas para si próprios”, disse o ex-ator, que, a exemplo de Joice, foi eleito pelo PSL. Desta vez, ele concorrerá a uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Para Antônio de Queiroz, consultor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), os campeões de voto de 2018 tiveram desempenho pífio. “Em geral, o campeão de voto é uma decepção completa. Ele não se dedica à produção legislativa, mas a uma campanha permanente. É uma celebridade ou alguém que vive de gerar polêmica e confronto”, disse. Procurados, Eduardo Bolsonaro, Hélio Lopes e Sargento Isidório não se manifestaram.
•
“Em geral, o campeão de voto é uma decepção completa.” Antônio de Queiroz consultor do Diap “Se fosse para dar uma nota ao conjunto da obra (do Congresso), diria que se salva muito pouco.” Kim Kataguiri (União Brasil-sp) deputado federal
O Estado de S. Paulo.20 Jun 2022DANIEL WETERMAN ANDRÉ SHALDERSk