Guia de sobrevivência no ‘novo normal’
Com o fechamento do comércio na quarentena, a forma de comprar e vender se tornou quase totalmente digital. Confira na terceira reportagem da série até que ponto as mudanças de hábitos do consumidor vão se manter no pós-pandemia e como deverão afetar o varejo e os serviços.
Com o fechamento do comércio durante a quarentena, a nossa forma de comprar e de vender se tornou quase 100% digital. Basicamente, só os hiper e supermercados, além do pequeno varejo de alimentos, mantiveram as portas abertas na fase mais dura do isolamento social. Mesmo assim, muitos consumidores preferiram fazer as compras online, quando possível – e as empresas tiveram de se desdobrar para atendê-los.
Com a reabertura do comércio, as lojas de rua, que vinham perdendo espaço nos últimos anos, ganharam novo impulso. Ao mesmo tempo, o delivery ampliou sua participação nas vendas e se sofisticou, conquistando uma nova clientela.
Confira a seguir, na terceira reportagem da série Guia de Sobrevivência
no “novo normal”, até que ponto essas três grandes mudanças de hábitos do consumidor vão se manter no pós-pandemia e como elas deverão afetar o varejo e os serviços.
1. Expansão do comércio eletrônico
Durante o período de isolamento social, o comércio eletrônico, que já vinha em alta há anos, ainda que em ritmo mais lento, cresceu em progressão geométrica no País. De repente, quase todo mundo, inclusive os mais idosos, que tinham maior resistência em aderir ao sistema, passou a ir às compras pela internet.
Com a flexibilização da quarentena e a reabertura do comércio, as vendas online registraram um ligeiro recuo, mas continuaram bem acima do nível do pré-pandemia. Segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm), o número de pedidos nas lojas virtuais aumentou 70,3% de janeiro a novembro do ano passado, ante igual período de 2019, enquanto o faturamento cresceu 69,6%, para R$ 115,3 bilhões. Antes da pandemia, a previsão era de um aumento de 18% no faturamento no ano todo.
Em 2021, se não houver novo endurecimento das medidas de isolamento social, a tendência é de que haja uma desaceleração no crescimento do ecommerce, embora o resultado ainda deva ser robusto. De acordo com a Ebit|Nielsen, empresa de mensuração e análise de dados, as vendas online devem crescer 26% neste ano em relação a 2020.
“Com a pandemia e tudo o que a gente conseguiu avançar em comércio eletrônico nesse período, o Brasil tem hoje entre 38 milhões e 42 milhões de consumidores online, dependendo da fonte, o que é quase o dobro do que tinha antes”, diz Fernando Gambôa, sócio no Brasil da KPMG, uma empresa internacional de consultoria, e responsável pela área de consumo e varejo. “Mesmo assim, isso representa apenas 20% da população brasileira. O espaço para crescer, portanto, é muito grande.”
O e-commerce conquistou também uma legião de pequenos negócio que estavam fora do jogo e se associaram a um marketplace, como o da Lojas Americanas, o da Magalu e o da Amazon, para tentar sobreviver na quarentena. Cerca de 150 mil novas lojas virtuais surgiram entre março e julho, no auge da crise, segundo a Abcomm – uma média de 30 mil por mês ou quase uma nova loja por minuto, enquanto no pré-pandemia a média era de 10 mil lojas por mês.
Muitos empreendedores, de acordo com Gambôa, passaram a questionar se faz sentido manter lojas físicas, cujos aluguéis custam caro, em vez de ficar só no mundo virtual, com uma base operacional em locais menos valorizados e o acesso a um número muito maior de clientes. “Quando o varejista vai ao e-commerce, abre um tremendo leque de oportunidades”, afirma.
Na visão do economista Adriano Pitoli, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e exchefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia em São Paulo, a pandemia trouxe também enormes desafios para as grandes redes de varejo, que já estavam estabelecidas no e-commerce.
Para ele, embora sejam festejadas pelos investidores e tenham aumentado muito o faturamento com o comércio eletrônico durante a crise, as grandes redes ainda não comprovaram que seus modelos de negócios digitais são lucrativos. “É duro ganhar dinheiro nesse mercado. Mesmo para a Amazon, é difícil gerar lucratividade”, diz. “Até pouco tempo atrás, o que estava dando lucro para a Amazon era o serviço de ‘nuvem’ e não o comércio eletrônico.”
Segundo Pitoli, a forte concorrência entre as redes na venda de bens industrializados de alto valor agregado, como as TVs inteligentes, leva à redução das margens de lucro. “Se um site está oferecendo uma TV da marca ‘X’ por R$ 5 mil e no site vizinho o mesmo aparelho está por R$ 4.999, o consumidor clica no de R$ 4.999.” Além disso, na quarentena, com as lojas fechadas, os próprios fabricantes passaram a oferecer seus produtos diretamente ao consumidor pela internet, ampliando ainda mais a concorrência.
Como se pode observar, ainda há muito a acontecer nessa área e a disputa pelo mercado só tende a aumentar. Melhor para o consumidor, que incorporou de vez o e-commerce em seu dia a dia.
2. Revitalização das lojas de rua
Um dos principais efeitos da pandemia no varejo foi a revitalização das lojas de rua, que vinham perdendo espaço há anos no País, e a redução na atratividade dos shoppings. Passado quase sete meses da reabertura dos shoppings após a quarentena, eles ainda não conseguiram retomar o lugar que ocupavam antes da crise e é difícil dizer no momento se algum dia conseguirão fazê-lo.
Apesar de muita gente estar se comportando como se a pandemia estivesse “no finalzinho”, como diz o presidente Jair Bolsonaro, uma parcela considerável da população continua preocupada com o contágio e procura manter um certo distanciamento social. Por isso, quando precisa sair de casa para ir às compras, uma parcela considerável dos consumidores está dando preferência ao varejo de rua, que pode atender os clientes na calçada, se for o caso, em vez dos shoppings, que são locais fechados e favorecem aglomerações.
Muitos varejistas que haviam deixado de lado as lojas de rua voltaram a enxergá-las como uma alternativa para rentabilizar os seus negócios, estimulados pelo crescimento do comércio eletrônico e pela queda substancial do movimento dos shoppings em relação ao pré-pandemia.
Com a redução do faturamento, a viabilidade econômica de manter uma loja em shopping ficou em xeque. “Todo mundo entendeu que, migrando para loja de rua, barateia o seu custo e pode criar um estoque segregado para realizar as vendas online e continuar vivendo do e-commerce”, afirma Fernado Gambôa, da KPMG. “Se você usar uma loja de shopping para fazer e-commerce, cada produto que enviar para um cliente terá de pagar uma porcentagem para o shopping, coisa que no varejo de rua não acontece.”
Segundo ele, é provável que haja um aumento na devolução de espaços nos shoppings e uma redução no interesse das marcas por buscar novos empreendimentos do gênero para se instalar. Isso deverá levar a uma redução dos lançamentos de shoppings no País nos próximos meses e anos. “Para lançar um novo shopping agora ficou complicado”, diz.
No exterior, já antes da pandemia, de acordo com Gambôa, os shoppings estavam se reinventando e se transformando em grandes centros de entretenimento, “com umas lojas do lado”. A questão é que, com o coronavírus, esse modelo, que favorece aglomerações ainda maiores do que os shoppings tradicionais, também ficou na berlinda. De um jeito ou de outro, tudo indica que as mudanças ocorridas no varejo durante a crise deverão se aprofundar daqui para a frente.
3. Delivery no cardápio
O delivery já era uma realidade no País muito antes da pandemia. Mas, na quarentena, os motoqueiros que prestam serviço de entrega em domicílio tomaram conta das ruas como nunca, impulsionados por aplicativos como iFood, Rappi e Uber Eats. Até bebidas produzidas em bares da moda passaram a ser entregues em casa, ampliando o cardápio à disposição dos clientes.
Em São Paulo, restaurantes estrelados, como o Fasano, e chefs famosos, como Erick Jacquin, do Presidént, e Carla Pernambuco, do Carlota, que nunca haviam aderido ao sistema, entraram na dança, para manter o negócio em funcionamento durante a fase mais aguda de isolamento social.
Com a adesão de nomes de destaque da cena gastronômica ao delivery, as velhas quentinhas de alumínio ou isopor cederam espaço a embalagens mais sofisticadas e mais criativas. Além de manter a textura dos ingredientes e o visual dos pratos, elas ainda deram um toque de classe ao serviço.
Mesmo depois da reabertura de bares e restaurantes para atendimento presencial, o movimento ainda está bem abaixo do que no prépandemia. Muita gente ainda não se sente segura em fazer as refeições num ambiente fechado, com as mesas frequentemente distribuídas em desacordo com o protocolo e com todos os clientes sem máscara. É provável, portanto, que o delivery continue a turbinar o faturamento, contribuindo para garantir a sobrevivência dos estabelecimentos.
Segundo uma pesquisa realizada pela Cielo, uma das principais empresas de administração de cartões de crédito, a receita de bares e restaurantes em outubro ainda foi 26,8% menor do que antes da covid-19, mesmo com o delivery, e a previsão é de que ainda levará um bom tempo para retornar ao patamar anterior à crise.
De acordo com estimativa do Instituto Foodservice Brasil (IFB), uma organização que congrega as principais empresas do setor de alimentos – fabricantes, prestadores de serviço e operadores –, os gastos com refeições preparadas fora de casa em 2020 ficaram em R$ 137 bilhões – uma queda no faturamento de 36,2% em relação aos R$ 215 bilhões de 2019. Para 2021, a previsão é de um faturamento de R$ 187,2 bilhões, um resultado melhor que o do ano passado, mas ainda 13% abaixo que o de 2019. “Muitas empresas continuarão a manter os funcionários em home office e aquele movimento que havia perto dos escritórios pode nunca mais voltar a ser o mesmo”, diz Ingrid Devisate, diretora executiva do IFB.
Não por acaso o Burger King abriu no Brasil a primeira ghost kitchen (“cozinha fantasma”) da rede no mundo, para fazer frente ao aumento na demanda pelo delivery e otimizar a entrega presencial nos restaurantes do grupo. O iFood, por sua vez, recebeu aval da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) para começar a operar com drones. A ideia é usar os equipamentos para realizar a primeira parte do trajeto, até um posto intermediário, no qual os pedidos serão distribuídos aos entregadores, para ser levados aos endereços da clientela. São apostas que reforçam a percepção de que o delivery deverá continuar a ter uma presença relevante na vida de todos nós mesmo depois que a pandemia passar.
O Estado de S. Paulo, 3 Janeiro de 2021