Após o auxílio emergencial, a ideia de um “colchão social” permanente para a população mais pobre ganhou força e entrou no radar.As medidas de isolamento social adotadas aqui e lá fora, para tentar conter a propagação do coronavírus, tiveram um impacto brutal na economia. Provocaram mudanças relevantes no cenário pré-covid ou reforçaram tendências que já estavam em curso. A seguir, confira como a pandemia afetou seis áreas fundamentais da economia – os juros, o dólar, a poupança, a renda dos mais pobres, as finanças públicas e a globalização – e entenda o impacto disso em sua vida, nas empresas e no País nos próximos meses e anos.
- Juros baixos
Durante a pandemia, a queda dos juros – que já vinha ocorrendo desde o governo Temer e ganhou tração na atual gestão – acentuou-se. Para tentar alavancar a atividade econômica e tirar o País da profunda recessão registrada nos primeiros meses da pandemia da covid-19, o Banco Central (BC) cortou a taxa básica (Selic) para 2% ao ano, o menor patamar da série histórica, no qual se mantém até hoje, e não há perspectiva de elevação significativa no horizonte.
Diante do retrospecto do País como tradicional campeão mundial dos juros altos, é difícil acreditar que a bonança possa durar muito tempo. Até analistas respeitados no mercado questionam a capacidade de o BC manter as taxas no nível atual. Mas, segundo economistas de diferentes correntes ouvidos pelo Estadão, a tendência é de os juros continuarem muito baixos, seguindo um movimento internacional, por mais um ano ou até um pouco mais, ainda que venham a sofrer uma ligeira alta até lá.
Com a inflação na faixa de 4% ao ano, isso quer dizer que as taxas reais continuarão negativas e que o investimento em aplicações de renda fixa, como os CDBs, os fundos e a poupança, não cobrirá sequer a perda do valor de compra da moeda. Por outro lado, para os tomadores de crédito e para quem está no vermelho – incluindo o próprio governo, que fechou o ano com um rombo em torno de R$ 830 bilhões, segundo as estimativas oficiais –, a manutenção dos juros baixos deverá representar um alívio mais que bem-vindo em suas contas.
“Os juros em 2021 serão muito maiores do que em 2020? Não”, diz Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro. “Eu acredito que isso é duradouro, sim”, afirma Gustavo Franco, sócio da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do BC. “Com a economia ainda saindo da recessão e o desemprego alto, os juros deverão continuar baixos por um tempo estendido”, diz Tony Volpon, ex-economista-chefe do banco suíço UBS no Brasil e ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC.
A definição do movimento dos juros – se o patamar atual vai se manter por um prazo mais longo ou se será um fenômeno efêmero, que durará só mais alguns meses – dependerá de vários fatores. O primeiro é o ritmo de retomada da economia. Se a recuperação for acelerada e não houver novas intempéries pelo caminho, os juros deverão começar a subir de forma lenta e gradual, de acordo com Volpon, em direção ao nível pré-pandemia, de 4,5% ao ano, mas ainda bem abaixo da média histórica no País.
O segundo fator que poderá provocar uma elevação das taxas é um repique da inflação. Mas, apesar da ligeira alta ocorrida nos últimos meses, puxada pelo aumento dos preços dos alimentos, a expectativa no fim do ano era de uma inflação de 4,4% em 2020, pouco acima da meta, e de 3,4% em 2021, segundo o boletim Focus, que reúne as estimativas dos bancos para os principais indicadores econômicos.
Outro ponto que deverá nortear o comportamento dos juros é a questão fiscal. Se o teto de gastos for preservado e a equipe econômica conseguir manter as contas públicas sob controle, resistindo ao ímpeto gastador de alguns políticos, ministros e até do presidente Jair Bolsonaro, o BC terá margem maior para manter o atual nível das taxas. “Para consolidar o cenário de juros baixos e isso não ser algo de dois ou três anos, mas de mais de uma década, teremos de fazer um esforço de ajuste fiscal”, afirma Mansueto Almeida. “Ainda bem que a gente está vendo como é bom viver com Selic de 2% ao ano”, diz Gustavo Franco. “Isso ajuda em Brasília. Quando a turma ameaça os políticos dizendo que ‘vai subir o juro de novo’, eles ficam com medo.”
Se as taxas se mantiverem no patamar atual por um prazo mais longo, haverá uma guinada radical no cenário macroeconômico do País. “Já há algum tempo tenho opinado que essa queda de juros parece com a estabilização da economia”, afirma Franco, que fez parte da equipe que desenvolveu e implantou o Plano Real. “Sua relevância só é inferior ao fim da hiperinflação, mas ela é parecida nos efeitos.”
No novo cenário, a “ciranda financeira” perde atratividade, como já está acontecendo, e o investimento na produção e em ativos reais, como imóveis e máquinas, ganha força. “Com o juro caindo como caiu, os preços dos ativos mudam para melhor. O futuro fica mais perto e invertem-se algumas lógicas habituais do mundo empresarial no Brasil”, diz Franco.
- Dólar alto
Durante a crise, o dólar deu um salto. Depois de roçar os R$ 6, em meados de maio, a moeda americana recuou, em meio a solavancos pontuais, para a faixa de R$ 5,2, mas ainda acumulava uma valorização de 29% no ano, até 27 de dezembro. Entre as 30 moedas mais negociadas no mundo, o real foi a que registrou a maior desvalorização no ano que terminou, puxada pela retirada maciça de capitais do País e pela redução dos aportes externos na produção.
De janeiro a novembro, de acordo com o BC, o fluxo cambial ficou negativo em US$ 19,2 bilhões, puxando o dólar para cima. No canal financeiro, que reúne os investimentos estrangeiros diretos e em carteira, remessas de lucro e pagamento de juros, a saída de recursos superou o ingresso em R$ 45,2 bilhões no mesmo período, resultado compensado apenas em parte pelo saldo registrado na balança comercial, de US$ 25,9 bilhões.
Embora as turbulências políticas e a política ambiental do País sejam muitas vezes apontadas como responsáveis pela fuga dos estrangeiros e pela elevação do dólar, dois outros fatores teriam levado à debandada dos investidores externos e à escalada da moeda americana frente ao real, segundo economistas ouvidos pelo Estadão: a queda substancial dos juros locais, para o patamar inédito de 2% ao ano, e as incertezas geradas pela pandemia em relação ao desempenho da economia global.
“O nosso movimento nos juros foi fundamental para dar ao câmbio um feitio que ele deveria ter desde quando você quiser”, diz Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor executivo do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial (Iedi) e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Vinha muito capital de fora em função disso, valorizando a nossa moeda, e a redução dos juros acabou com aquele ganho fácil da arbitragem cambial.”
Para o economista Carlos Langoni, ex-presidente do BC e diretor do Centro de Economia Mundial, ligado
à Fundação Getúlio Vargas (FGV), a saída dos estrangeiros e a alta do dólar se devem também ao “choque global” provocado pelo coronavírus. “O que houve foi um tsunami que começou na China e foi chegando ao Brasil”, afirma. “No mundo todo, houve uma aversão ao risco que se refletiu numa fuga de capitais, principalmente de economias emergentes.”
Independentemente da discussão sobre as razões da alta do dólar, o pior parece já ter passado. Apesar do soluço recente, em decorrência dos temores de investidores internacionais sobre os efeitos que a nova onda de contágio na Europa pode ter na economia mundial, as projeções continuam positivas. De acordo com o Boletim Focus, que reúne as estimativas dos bancos, a previsão é de que a moeda americana feche 2021 em R$ 5,4, com queda de 2% em relação ao valor corrente.
Na avaliação do economista Gustavo Franco, houve uma espécie de overshooting do dólar e “o normal” agora seria a cotação recuar mais um pouco. “Houve muita criação de liquidez nos Estados Unidos e isso vai para a extremidade do sistema, vai chegar aqui.”
Segundo ele, a perda de atratividade da renda fixa para os investidores externos deverá ser compensada, em alguma medida, pelo ingresso de moeda forte para a compra de ativos no País, que ficaram mais baratos com o valor atual do dólar. “Estamos num período de transição. Com esse juro e com o dólar onde está, é outra equação”, diz.
A combinação de juros baixos e dólar alto deverá favorecer o setor produtivo, especialmente a indústria, que perdeu competitividade na arena global nas últimas décadas. As exportações serão beneficiadas, apesar da retração do comércio global, e as importações ficarão mais caras.
Para Tony Volpon, porém, as mudanças ocorridas no câmbio e nos juros só serão suficientes para a indústria reconquistar o espaço perdido no País e no mercado global se forem associadas à abertura da economia, a um ambiente de negócios mais amigável e a aumentos de produtividade.
A questão, como sempre, é que a indústria brasileira resiste fortemente à abertura. O lobby da “boquinha”, destinado a preservar a alta taxação dos importados e as benesses fiscais obtidas no passado, está rolando mais uma vez a céu aberto em Brasília e se infiltrando no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e no Congresso.
- Reforço na poupança
Em meio às incertezas trazidas pela pandemia e ao desemprego recorde registrado no País, muita gente decidiu engordar a sua poupança. Na quarentena, com o fechamento das lojas, o consumo perdeu força, embora tenha se recuperado nos últimos meses, com a flexibilização das medidas de isolamento social.
De janeiro a novembro, segundo o BC, a captação líquida (depósitos menos saques) da caderneta de poupança, ainda a aplicação mais popular no País, chegou a R$ 145,7 bilhões, mesmo com rendimento – em torno de 1,6% ao ano – abaixo da inflação, estimada em cerca de 4% em 2020. O resultado alcançado, turbinado pela transferência de bilhões de reais em recursos públicos para a população, por meio do pagamento do auxílio emergencial e pela antecipação do 13º dos aposentados, foi recorde para o período desde o início da série histórica, em 1995.
Em novembro, último dado disponível, o ímpeto dos poupadores diminuiu, com a retomada gradual da economia, como já previam os analistas. Ainda assim, os depósitos voltaram a superar os saques, pelo nono mês seguido, com captação líquida de R$ 1,5 bilhão.
A percepção é de que o nível robusto de captação da caderneta seja um fenômeno temporário, inclusive por causa dos juros baixos, que desestimulam as aplicações de renda fixa como a poupança, e não um sinal de que a crise transformou o Brasil numa nação de poupadores. “É uma poupança circunstancial, muito por conta da redução de gastos das famílias durante o isolamento social e de uma ingestão bilionária de recursos pelo governo com o auxílio emergencial”, diz Ademir Corrêa Júnior, diretor de Investimentos do Bradesco.
Para ele, porém, a pandemia pode ter provocado uma mudança no comportamento do consumidor, levando-o a questionar se precisa consumir tanto quanto antes e comprar tudo o que comprava. Isso poderá se refletir nos depósitos da poupança e de outras modalidades de investimento, que também tiveram alta na captação. “Surgiu uma consciência diferente na pandemia”, diz.
- ‘Coronavoucher’ repaginado
Criado no início da crise para atender os trabalhadores informais, os desempregados e as famílias de baixa renda, incluindo os beneficiários do Bolsa Família, o auxílio emergencial, também conhecido como “coronavoucher”, chegou ao fim.
Em dezembro foi paga a última parcela do benefício, que teve um papel fundamental para amenizar os efeitos da recessão no País. Segundo dados oficiais, o programa – que incluiu cinco parcelas de R$ 600 de abril a agosto e mais quatro de R$ 300 a partir de setembro – atendeu perto de 65 milhões de famílias, já contando as 14,3 milhões do Bolsa Família. No total, o programa consumiu R$ 320 bilhões, o maior volume de recursos destinado pelo governo para o combate à pandemia e a seus efeitos sócio-econômicos.
Com o pagamento do auxílio emergencial, a popularidade de Bolsonaro, que vinha em queda livre, deu um salto em todo o País, especialmente no Norte e Nordeste, e ele não queria perder o apoio que conquistou, considerado essencial para alavancar sua eventual tentativa de reeleição em 2022, com o fim do benefício. Mas, com a falta de recursos no orçamento, não deu para viabilizar a continuidade do programa, que ganhou o apoio até de partidos de esquerda, por ampliar o “colchão” social oferecido aos mais pobres.
De qualquer forma, a ideia de implementar o benefício de forma permanente, que exigiria entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões por ano, além dos R$ 35 bilhões já destinados ao Bolsa Família, entrou no radar e poderá ressurgir quando as condições forem mais favoráveis. Isso garantiria uma renda mínima à parcela dos mais vulneráveis que recebeu o benefício em 2020 e está fora do Bolsa Família – um contingente estimado em 6 a 10 milhões de famílias.
- Contas públicas no vermelho
A estratégia de contenção dos gastos públicos, implementada pela equipe econômica no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi interrompida bruscamente em 2020, para fazer frente às demandas de saúde e de caráter econômico e social trazidas pela pandemia.
Com a dinheirama que jorrou dos cofres do governo durante a crise, autorizada pelo Congresso por meio do chamado “orçamento de guerra”, o rombo nas contas públicas se multiplicou. Segundo as previsões dos economistas, o estrago deixado pela pandemia deverá moldar o futuro do País por no mínimo mais uma década, reduzindo os recursos disponíveis, que já são escassos, para investimentos e ações sociais.
Em 2020, de acordo com as estimativas mais recentes do Ministério da Economia, o déficit primário, que exclui o pagamento dos juros para rolagem da dívida pública, aproximou-se de R$ 900 bilhões, um valor equivalente a 12% do Produto Interno Bruto (PIB), um recorde histórico. Incluindo os gastos com juros da dívida, que consumiram em torno de R$ 300 bilhões, equivalentes a 4% do PIB, a previsão era de um déficit nominal de cerca de R$ 1,2 trilhão (16% do PIB), outra marca inédita. Com esse resultado, a dívida bruta do governo geral, que havia caído 0,7 ponto em 2019, para 75,8% do PIB, fecharia 2020 em 93,5% do PIB, chegando a quase R$ 7 trilhões.
Um estudo realizado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, indica que a dívida bruta deverá seguir em alta até 2030, quando chegará a 117,6% do PIB, e só então começará a cair. “Se antes da crise a gente já tinha o desafio de ajustar as contas públicas e já era difícil fazer isso, depois da pandemia vai ficar ainda mais complicado”, afirma o economista Felipe Salto, diretor executivo da IFI.
Embora a equipe econômica afirme que o País vai retomar a política de ajuste fiscal praticada antes da crise e reforce o compromisso com o teto dos gastos, que limita o crescimento das despesas ao nível do ano anterior, corrigido pela inflação, o ímpeto gastador de alguns políticos pode prevalecer, tornando o quadro insustentável. O próprio presidente, apesar de dizer publicamente que respeitará o teto, “põe pilha” nas propostas que preveem aumento de gastos, de olho em sua provável tentativa de reeleição em 2022.
“Não tem muita margem para erro neste cenário”, afirma Mansueto Almeida. “Se chegar a um ponto de os investidores não confiarem no governo, o prêmio de risco para colocar os títulos públicos no mercado vai ser muito alto, o juro vai subir muito e a coisa poderá ficar muito séria.”
Hoje, em meio às discussões travadas no governo e no Congresso sobre o tema, é difícil cravar por quem os sinos vão dobrar. O que se pode dizer desde já é que o estrago deixado nas contas públicas pela pandemia continuará no centro do debate econômico do País por muitos anos, assim como no resto do mundo.
- ‘Desglobalização’
Com a desaceleração da economia mundial na pandemia, os negócios entre os países tiveram uma queda significativa. A última estimativa da Organização Mundial do Comércio (OMC) aponta um tombo de 9,2% nas exportações globais em 2020, em relação a 2019.
Mesmo que haja uma retomada da economia global em 2021, dificilmente o comércio internacional voltará ao patamar do pré-pandemia. A tendência é que o retorno ao nível de 2019 se dê de forma gradual, como em outras crises. Mas, para alguns analistas, o efeito da pandemia na economia mundial vai muito além do fluxo de comércio.
No auge da crise, segundo eles, a falta de produtos como respiradores e máscaras, fabricados em grande parte na China, reforçou o questionamento em relação ao papel desempenhado pelas cadeias internacionais de valor nas últimas décadas. Isso levará, de acordo com tal percepção, a um aumento nos índices de nacionalização ou regionalização da produção nos próximos anos.
“O mundo pós-pandemia não será o mesmo em relação à globalização”, afirma Gomes de Almeida, do Iedi. “Isso não significa que vamos voltar aos tempos pré-globalização, mas o mundo em que a gente vivia passará por uma reformulação. A questão estratégica agora vai fazer parte do jogo.”
Em crises como a gerada pela pandemia, sempre surgem previsões sobre uma possível marcha à ré na globalização. Isso ocorreu também na crise financeira global, em 2008, mas, como se constatou depois, as previsões não se confirmaram e a globalização retomou o seu vigor. Nada garante, portanto, que agora não acontecerá a mesma coisa.
O Estado de S. Paulo, 1 de Janeiro de 2021